Dizer que a vitória de Donald Trump é uma derrota para o movimento pelo direito ao aborto nos Estados Unidos é uma obviedade —martelada incessantemente pela campanha de sua adversária, a democrata Kamala Harris, e evidenciada abertamente em propostas de apoiadores do agora futuro presidente, como o Projeto 2025.
O que resta nesta quarta-feira (6) é a dúvida sobre qual será o escopo das ações antiaborto do segundo mandato de Trump e o quanto elas devem afetar também o resto do mundo.
Ainda é cedo para saber o quanto o republicano, não exatamente conhecido pelas posições ideologicamente consistentes, se alinhará à ala religiosa extremista de seus apoiadores. Ou, ainda, se adotará postura mais cautelosa, calibrada pelas reiteradas demonstrações de que a opinião pública majoritária nos EUA rejeita restrições duras à interrupção da gravidez.
Em seu primeiro mandato, Trump foi o responsável por indicar os juízes conservadores que formariam maioria para reverter Roe vs. Wade, o entendimento judicial que desde 1973 permitia o aborto nacionalmente nos EUA. Foi a maior derrota da história para o movimento americano pelos direitos sexuais e reprodutivos.
Grupos como o AFPI (America First Policy Institute) e a Heritage Foundation, que atuaram em proximidade com a campanha de Trump, possuem agendas bastante definidas para o combate ao aborto no país na era pós-Roe.
Entre elas estão a obrigação de realização de ultrassom antes de qualquer interrupção, a necessidade de consentimento parental para qualquer aborto realizado em menores de 18 anos e o financiamento público dos chamados “centros de gravidez de crise”, espaços que usam táticas enganosas para atrair mulheres em busca de aborto para dissuadi-las, muitas vezes com o uso de fake news sobre o procedimento.
A medida mais extrema aparece no Projeto 2025, livro de políticas da Heritage Foundation que estabelece como prioridade a reversão da regulação das chamadas “pílulas do aborto”, o misoprostol e a mifepristona, tornando-as efetivamente ilegais em todo o território nacional.
Esses medicamentos, recomendados pela OMS (Organização Mundial da Saúde) para interrupção segura de gestações, são responsáveis por mais da metade de todos os procedimentos nos EUA.
A “pílula do aborto” entra na mira de ativistas antiaborto principalmente porque, como podem ser administradas em casa e possuem baixo índice de complicação, são medicamentos que podem ser enviados para mulheres em estados onde o aborto foi tornado ilegal ou muito restrito, como Texas e Alabama.
Ao proibi-la nacionalmente, o objetivo é dificultar o acesso às pílulas e aumentar a possibilidade de punição criminal de ativistas pegas enviando-as pelo correio —ainda que a experiência latino-americana demonstre que criminalizar o misoprostol e a mifepristona não acaba com os abortos medicamentosos.
A retirada do registro teria ainda outro efeito colateral: o misoprostol tem outras funções obstétricas, sendo utilizado, por exemplo, para indução de parto em gestações a termo.
Não se sabe o quanto Trump encampará propostas como esta em seu segundo mandato porque o futuro presidente evitou falar sobre aborto durante a campanha. Embora já tenha se gabado de ser o responsável pelo fim de Roe, o republicano rapidamente viu esse histórico se tornar uma de suas fraquezas eleitorais. Pesquisa de 2024 do Pew Research Center mostrou que 63% dos americanos defendem a manutenção do direito ao aborto em “todos ou quase todos os casos”.
O resultado das urnas demonstra que essa posição ainda tem ressonância no eleitorado, mas aponta para uma perda de força desde 2020. Dos 10 plebiscitos estaduais sobre a interrupção gestacional, 7 tiveram resultados pró-descriminalização, incluindo em locais de maioria republicana, como o Missouri.
Ainda assim, os ativistas antiaborto tiveram boas surpresas em Nebraska e Dakota do Sul, onde as propostas de proteção do direito à interrupção da gravidez foram rejeitadas —a expectativa do movimento era de abocanhar apenas a Flórida, o que se confirmou sem grandes dificuldades.
Uma coisa é certa: a vitória de Trump deve influenciar as políticas de direitos sexuais e reprodutivos para além das fronteiras dos EUA. Tradicionalmente aplicado por governos republicanos desde 1984, a chamada “Global Gag Rule” impede que ONGs financiadas pelos Estados Unidos atuem com políticas progressistas de aborto, em qualquer parte do mundo.
A volta da medida, adotada no primeiro mandato de Trump e repelida por Joe Biden, está prevista como prioridade da AFPI e é dada como certa pelos dois lados da disputa. Segundo o Guttmacher Institute, principal organização de pesquisa sobre direitos reprodutivos no mundo, durante os anos Trump a política impactou financiamentos de ajuda humanitária não relacionados ao aborto, como prevenção de HIV/Aids e até projetos de saneamento.
Além disso, há expectativa de que o republicano recoloque os EUA no Consenso de Genebra, aliança ultraconservadora internacional que busca repelir o direito ao aborto em âmbito global. Em 2023, Trump afirmou que recolocaria o país no grupo, fundado em 2020 por seu agora renegado ex-vice-presidente Mike Pence. O retorno daria novo fôlego à associação, atualmente liderada pela Hungria de Viktor Órban.