Para entender o tamanho do estrago que pode acompanhar a separação de um casal, precisamos levar em consideração um traço, demasiado humano, que nos funda e direciona nossas escolhas: nosso narcisismo constituinte. Esse narcisismo vive à espera de um milagre, da derradeira vingança –aquela que demonstraria, sem sombra de dúvida, que Copérnico estava errado e que nós somos o centro da galáxia. Mas como conciliar a matemática narcísica, na qual só há lugar para um, quando todos partem do pressuposto de que são esse um?
A ciranda coreografada por Carlos Drummond de Andrade revela que o desejo se move na direção de um outro sempre inalcançável e, por isso mesmo, irresistível –aquele que nos faria sentir novamente imprescindíveis. Essa megalomania se sustenta na mais pura alucinação negativa da infância, que nos permitia ignorar os outros interesses de nossos primeiros amores, nossos pais. Não só eles tinham outros interesses além de nós, como nos amavam a partir de expectativas irreais. Basta pensar na contrariedade de um pai ao descobrir que seu filho não comunga de seus valores ou, ainda, nos terríveis casos em que a orientação sexual ou a escolha de gênero podem levar à excomunhão familiar.
Nas separações de casais, é possível ver como essa aposta narcísica inicial –de amar e ser amado sem furos– é desmascarada. Essa experiência crucial dói de diferentes formas, e a primeira, mais óbvia, diz respeito à ferida em nosso amor-próprio. A coisa é tão arraigada que, até quando somos nós a propor a separação, não raro nos sentimos enciumados ao nos depararmos com o novo affair do ex.
Separações não primam pela elegância, revelando o pior de cada um diante da tristeza, da frustração e do medo de ter que mudar. Nem todos conseguem ultrapassar a tormenta do fim de um relacionamento, e um ranço de queixas pode perdurar por décadas.
Mas vale reconhecer dois tipos de queixas, que só o tempo ajuda a distinguir. A mais óbvia diz respeito ao fracasso do outro em continuar nos amando ou em continuar sendo digno do nosso amor. Buscamos um Procon das relações afetivas que possa arbitrar sobre responsabilidades e culpas diante de tanto desencontro. A segunda queixa, que interessa mais, diz respeito à forma como esses afetos tão disruptivos foram tratados por ambas as partes. Raramente temos a racionalidade e a isenção necessárias para priorizar a devida atenção com quem, até pouco tempo, trocávamos juras de amor e desejo eterno.
Para aqueles que ultrapassaram a ferida narcísica, a dívida amorosa e a culpa pelo desejo indomável, resta a contabilidade da forma como foram cuidados durante o término. Isso pode ser o mais relevante, pois é o que costuma ficar como resíduo amargo ou gratidão na memória dos envolvidos. Ter sido cuidado e cuidar no final permite que separemos a tristeza de não nos sentirmos mais amados, ou de não amar mais, da tristeza de nos sentirmos desrespeitados em nossa dor, expostos em nossa vulnerabilidade, desamparados.
A dolorosa descoberta de que não temos mais o amor do outro, ou de que ele não tem mais o nosso, pode dar lugar à gratidão de termos sido dignos e tratados com dignidade na hora mais escura das relações –hora que está anunciada desde o começo.
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