Quando o primeiro filho da jornalista americana Chelsea Conaboy nasceu, ela ficou esperando a virada de chave. Aquela que a transformaria numa perfeita “mãe passarinho”, que sabe exatamente como montar o ninho, cuidar dos filhotes, e repetir instintivamente e pacientemente gestos que todas as outras mães passarinho fizeram antes dela.
Mas essa calma não veio. Apesar do deslumbramento e da alegria com a chegada do filho, ela se sentia inquieta, incerta com a maternidade.
Enquanto Conaboy lidava com as questões trazidas por seu próprio puerpério, a primatóloga Sarah Hrdy fazia um trabalho de observação. Sua filha e seu genro tinham acabado de se tornar pais pela primeira vez e ela se surpreendeu com uma dinâmica familiar que não reconhecia.
“O meu genro conseguiu uma licença mais generosa, e se tornou o cuidador primário. Foi a primeira vez na vida que vi um homem totalmente imerso no cuidado com um bebê”, diz ela.
Separadas por mais de 5.000 quilômetros e com especialidades profissionais completamente diferentes, as duas caminhavam para a mesma conclusão: a de que o “instinto materno” como nós o conhecemos não existe —e que homens são tão aptos quanto mulheres a funções de cuidado.
O resultado dos questionamentos de Conaboy e do deslumbramento de Hrdy são os livros “O Mito do Instinto Materno”, lançado neste ano no Brasil pela Companhia das Letras, e “Father Time”, ainda sem tradução no Brasil.
No primeiro, a jornalista especializada em ciência e saúde entrevistou dezenas de cientistas que estudam o cérebro de pessoas com filhos, e também conversou com pais e mães para entender o que acontece conosco quando uma criança vem ao mundo —ou quando cuidamos dela.
“O que eu descobri é que não existe esse ‘instinto materno'”, conta ela. “Primeiro, a ideia de que não existe um ‘instinto’ me reconfortou, mas depois eu fiquei muito brava por terem me vendido essa narrativa dominante.”
A resposta, segundo a jornalista, é que a presença de um pequeno humano muda profundamente as estruturas cerebrais dos adultos, possivelmente para sempre. Mas essas alterações não são exclusivas ao cérebro feminino, tampouco às mães gestantes.
“Mães não-gestantes e pais também passam por mudanças cerebrais no período que antecede o nascimento”, diz. “Já existem estudos que mostram, por exemplo, queda de testosterona nos homens, aumento na prolactina, que é um hormônio ligado aos laços sociais.”
Em “Father Time”, a primatóloga busca entender as origens evolutivas do cuidado masculino com bebês. Ela diz que por muito tempo, cientistas olharam para os homens como seres inerentemente desprovidos da capacidade de cuidar.
“Isso porque durante muito tempo os machos foram ameaças existenciais aos bebês”, explica ela. “Entre os primatas, o único momento que um macho chegava perto de um bebê era para eliminá-lo.”
Tentando entender como relacionar cientificamente o primata canibal e o genro que trocava a fralda dos netos de forma tão gentil, Hrdy encontrou um estudo israelense que acompanhou casais de homens gays com filhos. Eles descobriram que nesses homens a exposição a vídeos dos próprios filhos geravam uma reação comparável à de mães que gestaram crianças.
Mais do que isso: a parte ativada do cérebro pertence a uma rede de estruturas antiquíssimas, ligadas aos primeiros mamíferos e até a outros vertebrados. Isso levou Hrdy a formular uma teoria.
“As evidências apontam que a capacidade de cuidado dos cérebros masculinos vem de um período muito remoto, antes da evolução dos mamíferos”, explica. “Essas estruturas ficaram ‘adormecidas’ por milhões de anos, mas agora são ativadas com o trabalho de cuidado.”
Essa é a principal diferença encontrada por Conaboy e Hrdy em relação às mudanças cerebrais entre mães gestantes e outros cuidadores primários, como pais e mães não-gestantes. Para estes últimos, o gatilho para as alterações é a decisão voluntária de se envolver com o cuidado.
Conaboy explica, por exemplo, que existe uma relação “ovo ou galinha” quando se pensa em porque as taxas de abandono paterno, por exemplo, são muito mais altas do que de abandono materno. Não é que os homens sejam menos capazes de se envolver totalmente no cuidado —é que isso passa por um processo consciente de escolha.
Não que mães gestantes sejam as tais “mães passarinho”, prontas para criar os filhos imediatamente. Na verdade, a jornalista argumenta que embora a gravidez seja um processo hormonal e neurobiológico importantíssimo e que pode servir como o pontapé inicial, as mudanças do cérebro só vão se intensificar ao longo do tempo, com a prática do cuidado.
“A ideia do instinto materno é um caso clássico de desinformação, algo que é repetido tantas e tantas vezes que passa a ser tratado como verdade”, afirma ela. Conaboy explica que o instinto é um comportamento fixo que atinge universalmente toda a espécie.
“O que existe é um período de desenvolvimento muito intenso, mas que é afetado por toda a nossa experiência social pregressa e atual, não um comportamento fixo que é ‘ativado’ pela presença da criança”, diz Conaboy.
Para ela, a ideia de um instinto materno inerente às mulheres não é apenas incorreta, mas prejudicial a mulheres que sofram de problemas como depressão pós-parto e vício em drogas, condições que prejudicam a capacidade de desenvolvimento esperado do “cérebro parental”.
“Nós precisamos olhar para como funcionam nossos sistemas de apoio e saúde mental”, afirma ela. “Não há como olhar para mães e pais de forma isolada, sem levar em consideração o contexto em que eles estão.”
Hrdy, a primatóloga, diz ainda que repensar o cuidado sob o ponto de vista da presença masculina pode fazer bem aos homens e à sociedade como um todo. “Há estudos que mostram que sociedades em que os homens se envolvem com o cuidado são menos belicosas”, diz ela. “E para os homens, há benefícios em se sentirem mais conectados, mais necessários.”
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