Os tardígrados são animais microscópicos, têm entre 0,2 e 1,1 milímetro e são parentes dos artrópodes (aracnídeos, insetos e crustáceos). Podem viver em uma grande diversidade de ambientes, mas são pouco conhecidos.
Muitas espécies foram descritas ainda no século 20, quando poucas características eram usadas para diferenciar uma de outra e não havia ferramentas moleculares como as disponíveis hoje, que podem comparar um ou mais genes.
Por isso, em estudo publicado no Zoological Journal of the Linnean Society, pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) apoiados pela Fapesp ressaltam a importância de desconsiderar registros históricos de tardígrados neotropicais, provavelmente identificados incorretamente, ao estudar os padrões de distribuição desse grupo de animais microscópicos.
“Como grande parte das espécies era descrita inicialmente no hemisfério Norte e acreditava-se que elas poderiam ser cosmopolitas, podendo estar em qualquer lugar, não era incomum estudiosos encontrarem uma espécie parecida aqui e defini-la como sendo a mesma”, conta Pedro Danel de Souza Ugarte, primeiro autor do trabalho e bolsista de iniciação científica no Instituto de Biologia (IB) da Unicamp.
No estudo, os autores propõem desconsiderar um grande número de registros dos tardígrados conhecidos hoje nas Américas Central e do Sul. Os pesquisadores defendem considerar apenas aqueles descritos recentemente, que usaram várias características para diferenciar uma espécie de outra e, de preferência, com auxílio de dados moleculares. Ainda que defenda tantas exclusões, o estudo sugere uma possível diversidade de tardígrados na região bem maior do que se sabe.
“A diversidade é provavelmente altíssima, mas atualmente fica concentrada em poucos países pela falta de amostragem. Tivemos alguns trabalhos no século 20 que foram importantes, mas que provavelmente não representam a riqueza existente”, explica André Rinaldo Senna Garraffoni, professor do IB-Unicamp e coordenador do estudo, apoiado pela Fapesp no âmbito do Programa Biota.
O trabalho teve ainda apoio da fundação em outro projeto, no escopo do mesmo programa.
Garraffoni acrescenta que as espécies podem ser muito parecidas entre si e que as descrições realizadas no passado utilizavam poucas estruturas morfológicas dos animais para diferenciar uma da outra. Hoje, além de comparar uma grande quantidade de características do corpo, os pesquisadores se valem ainda de análises moleculares.
Além do oceano e ambientes de água doce, os tardígrados podem ocupar hábitats terrestres, desde que molhados, como poças, liquens, musgos e alguns tipos de plantas que acumulam água. Por isso, espécies desses ambientes são conhecidas como limnoterrestres.
Limpeza
Em 2023 foram registradas no mundo 271 espécies limnoterrestres de tardígrados, do norte do México ao sul da Argentina. Como apenas parte do norte do México está inserida na região de abrangência do estudo –Neotropical e Andes–, quatro espécies foram removidas das análises, totalizando 267 espécies.
De todos os tardígrados dessas áreas, os pesquisadores classificaram como “falsas cosmopolitas” aquelas espécies descritas primeiramente para outras regiões do mundo e depois reportadas aqui. Outra classificação, “indígenas”, foi atribuída àquelas descritas primeiramente aqui.
Os autores analisaram a distribuição incluindo e excluindo as 130 “falsas cosmopolitas”. Dessa forma, puderam entender como sua inclusão afeta a compreensão de padrões amplos de distribuição, como da biogeografia e da macroecologia dos tardígrados.
“Sabe-se que a capacidade de dispersão dos tardígrados é relativamente restrita, mas pode variar de espécie para espécie. Há alguns casos de espécies que realmente se dispersaram por mais de um continente, por exemplo. No entanto, acredita-se que a maioria é restrita a apenas uma região. Assim, utilizar registros de espécies anteriormente consideradas cosmopolitas, que provavelmente foram identificadas incorretamente, apenas dificulta o entendimento da distribuição do grupo”, afirma Garraffoni.
Como não é possível redescrever registros mais antigos, por causa da degradação ou ausência de material ou pela simplicidade da descrição, o que resta para os pesquisadores é desconsiderá-los. Com isso, não se pode saber se a maioria dos registros conhecidos (1.425 de 2.157) pertence a uma, dez, cem ou mais espécies diferentes.
“Devem existir muito mais espécies ‘indígenas’ do que se conhece hoje em todo o continente. Possivelmente ocorre o mesmo para o resto do mundo. Assim, espera-se que muitas outras espécies sejam encontradas no futuro, desde que haja um maior esforço amostral, especialmente em ambientes de altitude elevada, conhecidos por favorecerem a diversidade de tardígrados”, diz Ugarte.
Indestrutíveis
Na internet, não faltam fotos e desenhos de tardígrados, além de textos exaltando o fato de os “ursos d’água”, como também são conhecidos, serem “indestrutíveis”. Isso porque são conhecidos por suportarem duras condições de seca, radiação, falta de alimento e mesmo de gravidade. Missões espaciais levaram tardígrados e muitos voltaram vivos.
Essa capacidade, conhecida como criptobiose, é uma resposta a condições ambientais inóspitas que fazem o animal entrar num estado de dormência, se encolhendo no formato de uma bola e reduzindo seu metabolismo ao mínimo. Com isso, pode ficar até anos sem se alimentar nem se hidratar, voltando ao normal quando em contato com a água.
Quando em criptobiose, é praticamente impossível encontrar os animais. Por isso, amostras de material onde eles podem estar presentes são primeiro colocadas em água para que o animal apareça.
Os pesquisadores lembram que muitas possíveis funções ecológicas dos tardígrados não são conhecidas. Como se alimentam de matéria orgânica em decomposição e de outros microrganismos, podem estar controlando a população de outros seres vivos que poderiam se tornar pragas, por exemplo.
Além disso, as proteínas que atuam na criptobiose têm sido estudadas por grupos de pesquisa estrangeiros, que preveem aplicações que vão da conservação de vacinas até a proteção contra a radiação solar, por exemplo.
“Existe uma avenida de possibilidades de estudo, mas para isso é preciso conhecer essa biodiversidade, que está em todos os lugares”, diz Garraffoni.
Nem precisa andar muito. Em março, o grupo descreveu uma nova espécie, encontrada a poucos metros do laboratório em que trabalham, dentro do campus da Unicamp.