Enquanto no Brasil BHP e Vale, acionistas da Samarco, celebravam o acordo de R$ 170 bilhões com o Poder Público, a matriz da mineradora anglo-australiana era acusada de tentar interferir no julgamento da empresa em Londres e pagar indenizações irrisórias pelo rompimento da barragem em Mariana (MG).
Desde o mês passado, uma corte inglesa analisa se a responsabilização da filial brasileira da BHP alcança a matriz da multinacional, com sede no Reino Unido. Ação coletiva que congrega 620 mil pessoas afetadas pelo acidente, assim como dezenas de entidades e municípios, mira uma indenização que poderia chegar a R$ 260 bilhões.
O valor, além de superior ao acerto celebrado no Brasil, significa indenização direta aos litigantes. A diferença foi notada pelos advogados do escritório Pogust Goodhead, que patrocina a ação. Em uma das audiências iniciais do caso na Inglaterra, eles contaram que o programa de compensação montado no Brasil reverteu até agora R$ 900 a moradores do Espírito Santo e R$ 1.000 a residentes de Minas Gerais.
O colapso da barragem em Mariana, em 5 de novembro de 2015, matou 19 pessoas e espalhou milhões de metros cúbicos de lama tóxica por toda a bacia do rio Doce, de Minas Gerais ao oceano Atlântico, com profundas consequências socioeconômicas e ambientais.
Boa parte do acordo no Brasil, na verdade, provê recursos para que as três esferas de governo promovam apoio à população das áreas afetadas e programas de recuperação natural. Segundo a Advocacia Geral da União, 500 mil podem ser beneficiados e terão direito a indenizações.
Mostrar, no entanto, que isso é diferente de um valor pago diretamente pela empresa é estratégia da acusação para forçar a pertinência da ação coletiva no exterior, com milhares de interessados, já que esse tipo de instrumento jurídico não é previsto no direito brasileiro.
O escritório britânico, que se vale do chamado financiamento de litígio para bancar o processo, também ressaltou ao tribunal londrino que a BHP, por meio do Ibram, entidade que congrega as mineradoras do Brasil, tenta impedir que municípios participem do processo.
Flávio Dino, ministro do STF, acolheu pedido de liminar do Ibram, pois decisão anterior do Tribunal de Contas da União veda a administração pública de celebrar contratos de risco, como o do Pogust, que só cobrará de seus clientes em caso de sucesso no julgamento.
Os advogados do escritório classificaram como “opressiva” a manobra jurídica no Brasil e lembraram que 46 prefeituras participam da demanda. “Uma ação de direito privado por danos não tem nada a ver com relações internacionais ou soberania. As cidades estão perante o tribunal como qualquer outro litigante”, declarou à corte Andrew Fulton, do Pogust.
Em sua exposição inicial, na primeira semana do julgamento, a BHP declarou que não era responsável pela operação de sua subsidiária no Brasil e que seria exagerado entender como admissão de culpa declarações de executivos da empresa logo após o acidente.
Seus defensores também disseram que a empresa não teria como assumir a responsabilidade da operação da Samarco de acordo com a legislação brasileira. Um dos pontos do julgamento é entender a questão a partir do ponto de vista do direito material brasileiro. Entre novembro e dezembro, a legislação brasileira será objeto de debate no tribunal entre especialistas apontados pelas partes.
Antes disso, testemunhos e documentos estão sendo apresentados à corte. A acusação levou ao tribunal o resultado de uma auditoria realizada cinco anos antes do colapso da barragem. A análise já teria apontado “o mais alto perfil de risco” na instalação, que excederia “em muito os limites prescritos pelos padrões do setor”.
Também foram apresentados documentos tentando vincular a matriz da BHP à decisão de bônus a gerentes da Samarco por “desempenho de segurança excepcional” e que a filial tolerou o despejo de resíduos de outra mina da Vale no local, apesar de estar ciente de sua saturação.
Segundo sua assessoria, “a BHP não comentará interpretações de documentos apresentados nas audiências em andamento”.
O julgamento em Londres prossegue até março, mas uma sentença só é aguardada para meados de 2025. Em caso de condenação da BHP, um outro processo será necessário para determinar o valor de cada indenização dos milhares de litigantes. A expectativa, diante da dimensão da tarefa, é que a conclusão do caso consumiria mais três anos no mínimo.
Assim como a BHP, a Vale considera que o acordo fechado no Brasil enfraquece a argumentação em Londres, já que não seria juridicamente lógico as empresas pagarem indenizações duas vezes. A AGU tem a mesma opinião.
A Vale não é ré em Londres, mas sofre outra ação de responsabilização pelo desastre em Mariana patrocinada pelo Pogust Goodhead na Holanda, onde possui uma subsidiária.