Com a proximidade das eleições americanas, que ocorrem na terça-feira (5), a direita brasileira tem especulado sobre o que pode acontecer em relação aos abusos do Supremo Tribunal Federal (STF), do ponto de vista diplomático, se Donald Trump retornar à Casa Branca.
O candidato e ex-presidente não fez nenhuma declaração explícita sobre o assunto durante a campanha, mas as especulações têm como base uma série de sinalizações vindas de Washington nos últimos meses.
Membros do Congresso dos Estados Unidos têm manifestado publicamente sua preocupação e agido contra a escalada de autoritarismo e censura por parte de magistrados brasileiros, especialmente de Alexandre de Moraes.
Em setembro de 2024, os deputados republicanos Darrell Issa, da Califórnia, e María Elvira Salazar, da Flórida, apresentaram um projeto de lei intitulado “No Censors on our Shores Act” [Ato Contra Censores em Nossas Fronteiras]. A proposta visa sancionar nos Estados Unidos autoridades estrangeiras que, no exercício de suas funções, tenham agido contra a liberdade de expressão em outros países.
“O juiz do Supremo Tribunal Federal do Brasil, Alexandre de Moraes, é a vanguarda de um ataque internacional à liberdade de expressão contra cidadãos americanos como Elon Musk”, disse Salazar ao apresentar a proposta.
Em outubro, membros do Partido Republicano dos EUA, liderados pelo deputado Chris Smith, apresentaram um projeto de lei denominado “No Funding or Enforcement of Censorship Abroad Act” [Lei de Proibição de Financiamento ou Aplicação da Censura no Exterior], que visa interromper o financiamento de ONGs americanas que apoiam a censura no Brasil.
Por enquanto, com o poder nas mãos dos democratas, as ações ainda tiveram pouco respaldo no Executivo. O cenário pode mudar se Trump for eleito.
Tecnicamente, possibilidade de sanção a ministros é real, diz Ernesto Araújo
Sobre eventuais sanções a membros do STF por parte do governo americano, o ex-ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo diz que “tecnicamente, essa possibilidade é real”, mas ressalta que é necessário haver vontade política.
A chance de uma punição desse tipo partir diretamente do Executivo não é grande, mas há ao menos uma estrutura jurídica para que isso ocorra. O Magnitsky Act, uma lei de 2012 aprovada pelo ex-presidente Barack Obama, permite sanções contra estrangeiros envolvidos em violações de direitos humanos, até mesmo relacionadas à liberdade de expressão, com proibição de atividades financeiras e revogação de vistos das autoridades – inclusive de juízes.
“O Executivo americano pode cancelar vistos e congelar bens de autoridades estrangeiras, em certas circunstâncias. Pode igualmente proibir companhias americanas, inclusive bancos, de fazer negócios com cidadãos estrangeiros, inclusive altas autoridades. São atribuições do Departamento de Estado e do Departamento do Tesouro”, explica Araújo.
Violações de direitos humanos estão incluídas nas hipóteses de infrações que acarretariam sanção. As investigações, nesses casos, são conduzidas pelo Departamento de Justiça. “Investigações desse tipo podem também levar ao cancelamento de vistos e bloqueio de bens. Tudo isso está na esfera do Executivo e portanto depende, em última instância, de decisões do presidente americano. Resta portanto saber se haverá vontade política de tomar essas medidas”, afirma o ex-chanceler.
Araújo recorda que também há o caminho legislativo: “Uma eventual vitória de Trump pode levar o Executivo a buscar acelerar a tramitação no Congresso do projeto de lei dos deputados [Chris] Smith, [Jim] Jordan e [María Elvira] Salazar que proíbe os EUA de financiarem entidades que apoiem atos de censura no Brasil”.
Legislativo seria o caminho mais natural para eventual sanção do STF em governo Trump, dizem especialistas
Especialistas consultados pela Gazeta do Povo veem mais chance de uma sanção partindo do Legislativo que diretamente do Executivo.
Luiz Augusto Módolo, doutor em Direito Internacional pela USP, avalia que a eleição de Trump pode marcar uma mudança na relação dos EUA com o Judiciário brasileiro, mas algumas questões internacionais mais relevantes, como a invasão russa à Ucrânia e a situação no Oriente Médio, podem dificultar, ao menos de início, um foco no caso do Brasil.
Contudo, novas decisões do Supremo que chamem a atenção do governo americano, em especial no que se refere à liberdade de expressão, podem atrair os olhares de Trump para o Judiciário brasileiro. Caso isso ocorra, retaliações de ordem comercial seriam o caminho mais provável no âmbito do Executivo, segundo Módolo.
“Vamos lembrar que o fechamento do X, mesmo temporário, foi uma espécie de ‘nacionalização’ de ativos americanos e que as penhoras realizadas em ativos da Starlink e do X também afetaram interesses dos EUA. Os EUA podem a qualquer momento lembrar que tanto eles próprios como o Brasil ainda são membros da OMC [Organização Mundial do Comércio], e isso pode custar caro ao Brasil em Genebra”, afirma.
Ele acha pouco provável, por outro lado, que a sanção ocorra via Magnitsky Act. Módolo ressalta que a lei tende a ser aplicada a países que já têm na opinião pública mundial uma imagem consolidada de violações, como Rússia ou Irã.
“A Rússia, bem ou mal, ainda é uma potência militar e está há muito tempo no radar dos EUA, o que não é o caso do Brasil, cujas violações são mais recentes e não [estão] necessariamente afetando os EUA com a mesma intensidade”, diz.
Todas essas possibilidades, destaca Módolo, dependem muito de como os americanos vão se sentir afetados pelo que acontece no Brasil. Se houver prejuízos concretos aos interesses dos EUA, as chances de sanção aumentam. “O pragmatismo é a marca de Trump, e o nosso país não necessariamente ocupará seus interesses”, afirma.
Do ponto de vista do Legislativo americano, para Módolo, a situação pode ser diferente – e um pouco mais preocupante para os ministros do Supremo. Se Trump for eleito e houver, aliada a isso, uma mudança a favor dos republicanos na composição do Congresso, a reação americana pode ser mais relevante.
“Em caso de maioria republicana na Câmara e no Senado medidas como a ‘No Censors on our Shores Act‘, que prevem a punição de autoridades estrangeiras envolvidas em censura contra cidadãos americanos, teriam chance de ser aprovadas e sancionadas no caso de uma Presidência de Trump. Outras medidas similares e a realização de audiências dando voz a alguns dos alvos de medidas do STF atualmente nos EUA, como [os jornalistas] Paulo Figueiredo e Rodrigo Constantino, teriam maior chance de ocorrer, o que faria a situação do Brasil ter destaque mundial”, comenta.
Elton Gomes, doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e professor da Universidade Federal do Piauí (UFPI), lembra que as relações entre Brasil e Estados Unidos são historicamente caracterizadas “por uma agenda pragmática e economicamente orientada”, que tende a se manter assim independente das mudanças de liderança.
Ele observa, contudo, que um eventual conflito entre figuras carismáticas como Trump e Lula, sobretudo em um contexto de fortalecimento da aliança do petista com o Brics (bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul, Arábia Saudita, Egito, Etiópia e Irã), pode gerar um clima político mais inflamado, que facilite uma ruptura nessa tradição diplomática.
Para ele, mesmo com a pressão exercida por parlamentares brasileiros junto ao Congresso dos Estados Unidos sobre a atuação do Judiciário brasileiro, a aplicação de sanções diretas a ministros do STF é improvável. No contexto atual, os EUA não consideram o Brasil um “rogue state” (estado rebelde), o que dificulta a imposição de sanções.
“A gente tende a exacerbar a importância do Brasil na arena externa. Os Estados Unidos são um país hegemônico. Eles estão preocupados com o mar do Sul da China, com a guerra da Ucrânia, com o conflito no Oriente Médio. São prioridades mais urgentes”, diz.
Gomes sugere, por outro lado, que poderia haver um aumento na cautela do Judiciário brasileiro para evitar medidas que possam ser vistas como abusivas por outros países. “A licenciosidade do Supremo e seu alinhamento político circunstancial com o Executivo talvez ficassem menos ousados em um eventual governo Trump. A Corte tenderia a ser mais cautelosa justamente por receio de criar uma condição tal que abrisse espaço para alguma forma de responsabilização, de sanção. Mas, repito, é limitada essa possibilidade. Não vejo como algo imediato, para logo depois que o Trump assumir”, comenta.
Para Módolo, a expectativa exagerada de que uma vitória de Trump possa ajudar a solucionar os problemas do Judiciário brasileiro tem algo de ilusório. “Nossos problemas quem vai resolver somos nós”, afirma.