Desde que a água invadiu sua casa em Roca Sales, a 143 km de Porto Alegre, Zilda de Vargas, 82, tem a impressão de não sair mais do hospital. “É pressão alta, é depressão. Eu nunca tinha nada, agora estou sempre doente”, sussurra, com tristeza na voz.
O trauma não a deixa esquecer das noites em que dormiu sobre uma cortina estendida no chão do terceiro andar de sua casa, o único que não inundou, nem dos repetidos gritos de socorro que irrompiam na noite, em meio à barulheira da correnteza. Ela e o marido perderam 12 vizinhos na primeira enchente, em setembro de 2023.
Assim como Zilda, outros gaúchos passaram a demandar atendimento médico e psicológico com mais frequência, muitos deles com sintomas de ansiedade.
No Vale do Taquari, onde estão as cidades mais atingidas, a população sofreu perdas materiais e humanas causadas por três tragédias em menos de um ano. Diante do abalo, a chuva virou um gatilho para memórias traumáticas, provocando reações físicas e emocionais.
“Muitas pessoas [chegam ao hospital] com dor no peito, começaram a vir com sintomas de ansiedade, sabe? Medo de morrer. Essa é a expressão”, diz o médico André Marcon, diretor do Hospital Beneficente Nossa Senhora Aparecida, em Muçum, a 154 km da capital.
Ele afirma não ter dados para quantificar o aumento da procura por atendimento, mas ressalta que, em uma cidade com 4.694 habitantes, não é exatamente difícil notar a mudança.
“A gente percebe visualmente. Eu faço dez, 12 consultas por dia aqui no hospital. [Uma pessoa] vem uma, duas, três vezes por semana, antes não vinha nenhuma”, diz. “Começou a sentir dor no peito, já vem para o hospital pensando que está infartando, mas é psicológico.”
Segundo ele, a prescrição de medicamentos para controlar a ansiedade ou outros transtornos psiquiátricos aumentou. O hospital também começou a receber pessoas com ferimentos que sugerem tentativa de suicídio. Nesses casos, a unidade encaminha os pacientes para acompanhamento psicológico e psiquiátrico.
A professora Simone Hauck, do serviço de Psiquiatria do HCPA (Hospital de Clínicas de Porto Alegre) e da pós-graduação em psiquiatria e ciências do comportamento da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), conduz desde 6 de maio uma pesquisa que busca acompanhar o desenvolvimento de problemas de saúde mental em decorrência das enchentes.
Os dados indicam que, num primeiro momento, as pessoas ficaram atordoadas. Em até 30 dias, 43% dos entrevistados relataram sintomas de depressão, e 46%, de ansiedade.
Entre 30 e 59 dias após os eventos, ambos os percentuais subiram a 52%, evidenciando a piora na saúde mental da população. Mais de 60 dias após a enchente, os relatos de sintomas de depressão caíram a 41%, e os de ansiedade, a 40%.
A pesquisa obteve respostas de cerca de 3.700 pessoas. Embora não possam ser extrapolados para a população gaúcha como medida de prevalência dessas condições, os resultados servem como um termômetro. Jovens, mulheres e pessoas de menor renda são os grupos mais expostos ao risco de adoecimento mental, assim como profissionais e voluntários que atuaram nos resgates.
Expor os dados, segundo a professora, também é importante para “normalizar” o sofrimento, no sentido de transmitir às pessoas a mensagem de que não estão sozinhas nesta situação.
“De fato, a maior parte das pessoas vai melhorar. Mas o sofrimento, no momento agudo, é normal”, afirma Hauck, ressaltando que a melhora está muito associada ao suporte comunitário e profissional e à retomada da rotina.
Pessoas em situação de sofrimento também podem procurar o CVV (Centro de Valorização da Vida), serviço que funciona 24 horas por dia. O contato pode ser feito pelo número 188, por chat ou por email, com total sigilo e anonimato.
A psicóloga Waleska Vigolo, responsável pelo departamento de saúde mental da Prefeitura de Roca Sales, afirma que os impactos de um desastre como esse podem se desdobrar em três fases.
Nas primeiras 72 horas, ocorrem as reações imediatas de alarme. “A gente tem, e eu falo a gente porque também sou moradora de Roca Sales e vivenciei na pele, reações de luta, fuga ou paralisia frente a tudo que aconteceu. Sintomas como taquicardia, sudorese ou até mesmo de desespero. É a fase de adrenalina, então não tem nem fome, nem sono, não sente dor”, diz.
De 1 a 3 meses, vem a fase da assimilação, que pode vir acompanhada de um estresse agudo. É quando começam a aparecer os sinais de ansiedade, o que inclui insônia. Após esse período, se a pessoa não consegue se reorganizar, a ansiedade pode se tornar crônica e é possível diagnosticar quadros de depressão ou TEPT (transtorno de estresse pós-traumático).
Segundo Vigolo, após a enchente de setembro de 2023, houve aumento na procura por atendimentos psicológicos na cidade, mas logo na sequência as pessoas foram tomadas por um sentimento de esperança de que aquele havia sido um evento isolado.
Veio a enxurrada de novembro, com menor gravidade, e a cidade seguiu seu processo de reorganização. No fim de abril de 2024, uma nova enchente devastadora deflagrou um quadro de ansiedade associado ao cansaço físico e mental da população.
“Aquela esperança que se tinha, a enchente e os deslizamentos [de maio] levaram, porque não era mais um evento isolado. Novamente aconteceu”, diz.
Ela afirma que a demanda por atendimento teve aumento expressivo, não só por parte de adultos, mas também de crianças e adolescentes. Muitos ficaram ilhados em escolas devido a deslizamentos e transbordamentos de arroios.
Nos relatos dos moradores, o clima de tristeza também transparece. “A cidade era mais feliz. Era mais agradável até de se ver. Se tu vai passear, não vê mais ‘ó, que paisagem linda’. Agora não. Vai levar um certo tempo para achar aquilo bonito”, diz o comerciante Marco Antonio Vendramini, 59.
Passados mais de 60 dias desde a última tragédia, uma das grandes preocupações é com pacientes que apresentam sintomas compatíveis com TEPT. A condição é pouco conhecida, o que faz com que só 1 em cada 4 pacientes busque ajuda —um gargalo relevante, dada a necessidade de intervenção rápida (até um ano após o trauma) para evitar que a condição se torne crônica.
A partir dos relatos, a pesquisa da professora Simone Hauck identificou uma queda no percentual de possíveis casos de TEPT, mas há a persistência de sintomas de “evitação”, quando a pessoa deixa de frequentar um lugar ou ver pessoas que a façam lembrar da tragédia.
Segundo ela, outros sintomas como ansiedade, tristeza, insônia, revivência (que incluem pesadelos e flashbacks) têm diminuído, mas não a “evitação”, o que é um achado relevante para orientar profissionais e a população. A retomada da rotina é um passo crucial para a superação do quadro.
Onde buscar ajuda
O SUS conta com a Rede de Atenção Psicossocial, voltada para pessoas em sofrimento psíquico ou com necessidades decorrentes do uso prejudicial de álcool e outras drogas. A rede inclui, entre outros pontos de acolhimento, as UBSs (Unidades Básicas de Saúde).
Voluntários do CVV (Centro de Valorização da Vida) atendem ligações gratuitas 24h por dia no número 188, por chat, email ou diretamente em um posto de atendimento físico, com total sigilo e anonimato.
O site do Instituto Vita Alere mapeia serviços públicos para quem precisa de ajuda e oferece cartilhas com orientações em saúde mental.
Quais são os sintomas de TEPT
Segundo a professora Simone Hauck, do serviço de Psiquiatria do HCPA e da pós-graduação em Psiquiatria e Ciências do Comportamento da UFRGS, os sintomas característicos de transtorno de estresse pós-traumático são:
- Revivência: sentir como o evento estivesse ocorrendo de novo, pesadelos, sintomas físicos quando algo lembra o evento
- Evitação: evitar pensamentos, lugares e pessoas que lembrem o evento
- Cognição e humor distorcido: culpa, incapacidade de sentir coisas boas, pensamentos ruins sobre si mesmo, outros e mundo
- Hiper-reatividade: sintomas de sobressalto, insônia, agressividade, impulsividade, crises de ansiedade
- Desrealização: sentir estranheza em relação à realidade, como se o tempo estivesse passando de forma diferente, ou que você estivesse se vendo de fora