Martinelli Santana, 50, já perdeu a conta de quantas vezes passou mal por causa do calor durante o trabalho. Sua rotina é preparar quentinhas na cozinha montada em um trailer na comunidade de Nova Holanda, no Complexo da Maré, na zona norte do Rio de Janeiro.
O que a cozinheira sente na pele está também documentado por especialistas: Nova Holanda entre as favelas mais afetadas pelas ilhas de calor na Maré, segundo estudo.
Trabalhar à beira de um fogão nas horas de temperaturas mais altas do dia, dentro de uma estrutura de ferro, não é uma tarefa fácil, conta Santana. Mas não pode parar.
A venda das refeições é a principal fonte de renda da casa, onde mora com o filho caçula, de 13 anos, e o marido, que sofre com problemas na coluna que o impedem de voltar a trabalhar em obras.
“Eu incho toda por causa do calor. Aqui dentro [do trailer], eu já cheguei a passar muito mal”, descreve.
Além do calor excessivo e dos problemas de saúde que ele traz, as chuvas são uma preocupação para o presente e o futuro do Complexo da Maré, aponta estudo que analisou os riscos e as vulnerabilidades climáticas do conjunto de favelas, onde moram 140 mil pessoas, divididas em cerca de 38 mil domicílios.
O trabalho, realizado pela WayCarbon, empresa de soluções voltadas para transição econômica de baixo carbono, em parceria com a ONG Redes da Maré, foi lançado no final de 2023, contendo uma série de alertas para a região.
As precipitações, embora aliviem o calor, geram inundações na Maré —e esse cenário tende a piorar com as mudanças climáticas. Em grande volume, as chuvas levam a transbordamento de rios, córregos, canais, lagos e açudes, o que aumenta também as chances de proliferação de doenças pelas águas contaminadas por esgoto.
Outra preocupação indicada no estudo é o aumento do nível do mar, principalmente na área mais baixa da Maré, onde as casas ficam perto do litoral. Até 2050, a costa corre risco de sofrer grandes danos e até ficar submersa, em razão da elevação dos oceanos gerada pelo derretimento das geleiras.
Nova Holanda, que tem densidade populacional classificada como “muito alta”, é também um dos locais mais sujeitos a inundações. Corre o risco de até desaparecer do mapa com o aumento gradual do nível do mar, conforme a análise.
Diferentemente de outras favelas localizadas em grandes morros, o Complexo da Maré é formado por 16 comunidades às margens da baía de Guanabara, entre as três principais vias de circulação da cidade: avenida Brasil, Linha Vermelha e Linha Amarela.
A ocupação na Maré começou em meados do século 20, em área de manguezal, com moradores que se instalaram em palafitas, e se consolidou entre os anos 1940 e 2000, por moradia espontânea e programas habitacionais.
Para enfrentar esse quadro de riscos, os especialistas propõem medidas de adaptação. Algumas das sugestões são a recuperação dos manguezais na região, a implementação de áreas verdes nos tetos das casas e a pintura das moradias com cores que refletem a luz do sol.
“A retirada do manguezal impede que aconteça aquele amortecimento natural da entrada de água dentro do continente. Então a restauração seria uma importante medida de adaptação”, exemplifica Melina Amoni, gerente de risco climático e adaptação na WayCarbon.
“O Complexo da Maré pode utilizar essas informações [do estudo] para cobrar ações de política pública”, diz também, enfatizando que outras favelas do Brasil precisam de análises de risco diante da crise climática.
Maurício Dutra, 35, coordenador do eixo de direitos urbanos e socioambientais da Redes da Maré, destaca que o complexo tem temperaturas de 2°C a 6°C acima do registrado em outras regiões da capital fluminense.
As condições de moradia, diz, agravam o problema. “No Conjunto Tijolinho, as casas, basicamente, têm uma medida de 3 por 10 [metros], são coladas uma ao lado da outra sem nenhum tipo de ventilação”, afirma, citando um dos conjuntos habitacionais da região.
Moradora do Conjunto Esperança, a universitária Jéssica Jardim, 26, que é agente climática na Redes da Maré, lembra que o complexo enfrenta ainda problemas de segurança energética, o que impede boa parte dos domicílios de utilizarem medidas de adaptação que são comuns em outros locais da cidade, como o ar-condicionado.
Procurado pela Folha para comentar os riscos apontados no relatório, o governo do Rio de Janeiro diz que mantém um comitê de chuvas que opera 24 horas, monitorando e respondendo a efeitos climáticos.
A gestão de Cláudio Castro (PL) afirma também que mapeia áreas suscetíveis a inundações e compartilha dados com municípios, que recebem capacitações para desastres, além de manter sistema de alerta de cheias.
Entre as ações de enfrentamento, o estado destaca o Plano Estadual de Adaptação às Mudanças Climáticas e o Rio Inclusivo e Sustentável. No Parque União, na Maré, a gestão afirma ter removido 2.800 m³ de sedimentos e também ter dado formação em educação ambiental a mais de cem alunos.
Também procurada, a Prefeitura do Rio diz, em nota, que prioriza a prevenção de desastres climáticos e implementou o Protocolo de Calor, com cinco níveis de alerta. Nessa frente, a cidade ganhou dois radares meteorológicos e rede de pluviômetros.
O município cita ainda as ações do Centro de Operações Rio para a prevenção de deslizamentos. Em agosto, foi criado um Comitê de Estudos Científicos Sobre a Elevação dos Mares.
A prefeitura registra também as ações da Comlurb (Companhia Municipal de Limpeza Urbana), na limpeza do Complexo da Maré, que também recebe o Programa Cada Favela uma Floresta, que restaura áreas degradadas.
O projeto Excluídos do Clima é uma parceria com a Fundação Ford.