Nos belos e rigorosos planaltos desérticos do estado americano do Novo México, é possível encontrar casas fantásticas e não convencionais que parecem ter saído de um filme de Star Wars.
Algumas dessas residências são esculturalmente arredondadas e chegam a lembrar palácios. Outras se parecem com templos antigos.
Elas foram criadas há quase 40 anos e ficam na cidade de Taos e arredores. São casas ecológicas, conhecidas como Earthships (“naves terrestres”, em inglês) –residências net zero (que atingiram o equilíbrio entre a emissão e a absorção de carbono), projetadas de forma sustentável e construídas principalmente com materiais naturais e resíduos, como pneus velhos, garrafas de vinho vazias, madeira e barro.
A construção das Earthships requer menos materiais de construção tóxicos ou emissores de carbono, como concreto e plástico. Elas também não consomem recursos naturais preciosos, como florestas, por exemplo. Por isso, a procura por essas residências diferenciadas vem crescendo em todo o mundo.
O valor de mercado das Earthships varia de cerca de US$ 500 mil a US$ 900 mil (cerca de R$ 2,8 milhões a R$ 5,1 milhões). Elas também são disponíveis para pernoite na região de Taos, por cerca de US$ 240 (cerca de R$ 1,4 mil) por noite.
O movimento das Earthships começou em Taos nos anos 1970.
O arquiteto Michael Reynolds, natural do estado americano do Kentucky e fundador da empresa de construção ecológica Earthship Biotecture, mudou-se para a cidade em 1969. Seu objetivo era “praticar motocross, por diversão”, segundo ele.
Agora com 71 anos de idade, Reynolds conta que teve um momento de inspiração.
“Eu vi [o âncora da TV americana CBS News] Walter Cronkite [1916-2009] falar sobre o desmatamento das florestas para extração de madeira, o que cria não só erosão, mas um problema de oxigênio, já que as árvores emitem oxigênio”, contou ele à BBC.
“Ele estava falando sobre o que chamamos, hoje, de mudanças climáticas e aquecimento global. Eu vi todas aquelas latas de cerveja jogadas fora e perguntei, ‘por que não construímos com latas de cerveja em vez de árvores?'”
Reynolds construiu sua primeira casa de latas de cerveja em 1971, conquistando algum espaço no noticiário com sua singularidade.
A casa foi exibida em várias partes do mundo, como o Museu do Louvre, em Paris, na França, e o Museu de Arte Moderna de Nova York, nos Estados Unidos.
Reynolds destaca, com alguma incredulidade, que o Museu de Arte Moderna “simplesmente comprou um tijolo de latas de cerveja por US$ 4,5 mil (cerca de R$ 25,6 mil).” E, de fato, depois de usar um dos blocos de construção produzidos com latas de cerveja em uma exibição, o museu decidiu acrescentar um desses blocos à sua coleção permanente.
Mas Reynolds ainda passou anos sendo basicamente considerado, quando muito, um maluco, não um arquiteto sério.
“Era uma ideia meio que ridícula, pura fantasia, mas segui adiante e comecei a avançar naquela direção”, ele conta.
“Comecei a usar garrafas e pneus, e segui em frente. Continuo nesta direção há pelo menos 55 anos e, cerca de 36 anos atrás, dei a uma casa, pela primeira vez, o nome de Earthship.”
E levou ainda muito tempo até que sua ideia conseguisse a aceitação do público.
“Sabe, elas pareciam muito esquisitas e ainda têm aparência estranha”, ele conta. “Mas, agora, as pessoas estão entendendo.”
“E [muitas pessoas] também estão abertas porque estão a dois holerites [como são chamados os comprovantes de pagamento de salário em algumas regiões do Brasil] de serem despejadas – e ainda são prejudicadas pelas contas de energia elétrica e outros serviços públicos”, explica Reynolds.
Ele destaca o aspecto financeiramente empoderador de viver sem depender da rede elétrica. E, além disso, “as pessoas, agora, querem reverter as mudanças climáticas.”
A técnica
A cidade de Taos atrai artistas e individualistas há muito tempo. A arquitetura da sua aldeia antiga e da cidade nova é surpreendente. São principalmente casas tradicionais de adobe, sustentadas por vigas de madeira, com tetos também de madeira e terra batida.
Taos foi a incubadora perfeita para as Earthships, com suas grossas paredes de pneus cheios de terra.
Uma margem de solo construída a propósito rodeia a Earthship em três lados. Ela fornece massa isolante, que controla a temperatura.
Para a refrigeração, a casa utiliza janelas tradicionais, abertas em locais altos sobre vigas de sustentação para obter ventilação cruzada, além dos tubos de ventilação da própria construção.
Reynolds acredita que cada pessoa deve ser capaz de cultivar seus próprios alimentos. Por isso, cada Earthship tem uma estufa, no lado norte ou sul, dependendo da localização.
A maioria das Earthships consome apenas energia solar, mas algumas também têm turbinas eólicas como suplemento, ou um forno a lenha, como reserva.
Em Taos, os invernos são frios e com neve. Muitas vezes, os verões são quentes e secos. Mas, na Earthship, a temperatura interna permanece perto de 21°C por todo o ano, independente das condições meteorológicas externas.
Reynolds conta que se mudou para sua primeira Earthship 35 anos atrás. Nela, ele criou sua família – e ainda vive na mesma casa. “É tão confortável que não queremos nos mudar”, justifica ele, indiferente.
Mas qual a sensação de estar dentro de uma Earthship? “Parece que você está dentro do útero”, responde a gerente de construção da empresa, Deborah Binder.
“Você se sente constantemente abraçado e aconchegado. A temperatura é sempre confortável. Às vezes, quando está muito frio no lado de fora, saio sem casaco sem perceber, porque está muito quente dentro de casa.”
Binder aderiu ao projeto 11 anos atrás, para gerenciar um projeto sem fins lucrativos no Maláui. Ela conta que não tinha nenhuma experiência na construção de casas.
Ela não só ficou na empresa, como acabou se mudando para Taos. Atualmente, ela aluga uma Earthship, enquanto constrói a sua própria residência.
Binder também leciona na Academia Earthship, que atrai alunos de todos os tipos para aprender os princípios do projeto das Earthships, sua filosofia e os métodos de sua construção.
“A maioria das pessoas querem aprender por si próprias”, conta Binder. “Algumas aprendem para construir para projetos comunitários.”
Apesar do seu apelo ambiental, as Earthships ainda não são aceitas como opção para reduzir a crise habitacional e combater as mudanças climáticas. “Elas ainda são marginalizadas”, afirma Binder.
“É muito importante que as pessoas fiquem em uma [Earthship]. A sensação que você tem ao morar nelas é única. E, em termos práticos, você não paga as contas de serviços. É incrível.”
“Quando as pessoas experimentam as casas, elas normalmente querem uma”, acrescenta Reynolds. E a grande quantidade de testemunhos elogiosos nos livros de presença em cada aluguel das Earthships confirma esta afirmação.
Reynolds acredita que o momento atual não poderia ser mais oportuno para fazer com que as Earthships se tornem padrão – e até com urgência. O objetivo do arquiteto é construir habitações comunitárias para aluguel, em resposta à falta de moradia e ao consumo de energia, que está devastando o planeta.
“Não estou muito interessado em encomendas; ter um cliente só me faz ir mais devagar”, segundo ele. “Preciso construir rápido e alugar para as pessoas por preços justos.”
Reynolds avança a todo vapor com seu recente modelo Earthship Refúgio, mais eficiente. Ele acredita que poderá ajudar a reduzir a pobreza e a falta de moradia, devido à simples economia de não precisar pagar enormes contas de serviços públicos todos os meses.
“O Refúgio é o modelo com construção mais econômica, que iremos reproduzir em todo o mundo”, defende ele, apaixonadamente.
Além do Refúgio, existe também o curioso modelo Atlantis –uma Earthship azul-turquesa com curvas surpreendentes. Ela foi criada como exemplo do lado artístico e escultural das construções.
“Existe nelas um lado artístico”, explica Reynolds. “Usei as garrafas como vitral e existe o aspecto escultural. Elas são bonitas.”
Reynolds conseguiu cursar a faculdade de arquitetura trabalhando como artista. Para ele, “o que realmente é bonito é que elas cuidam das pessoas, enquanto cuidam do planeta.”
“Nada tem tanto significado na arte quanto uma casa.”
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Travel.