Há alguns meses, Larissa Albuquerque, 33, e Daiene Albuquerque, 37, renasceram. Elas cobriram suas cicatrizes de queimadura nas pernas com tatuagens feitas por Raquel Gauthier e Marguerita Sultanova.
Para Larissa, sua relação com a cicatriz era longe de ser amorosa. “Eu entendo que são marcas de algo que sobrevivi, mas elas trazem junto a parte desagradável, que é a questão de nos limitarmos, nos privarmos, não vivermos.” Ela diz que a tatuagem simboliza o encerramento de um ciclo, deixando para trás o acidente que sofreu na adolescência.
Quando Larissa tinha 15 anos e Daiene 18, elas foram vítimas de um incêndio na casa onde moravam com a mãe, outra irmã e uma sobrinha. O fogo começou na parte onde o tio delas estava instalado e, ao tentarem socorrê-lo, acabaram sendo atingidas.
Larissa teve 55% do corpo queimado, passou por mais de 20 enxertos de pele e ficou 11 meses internada no hospital. “Foi um trauma muito grande”, relata.
Daiene conta que sua irmã mais nova parou de viver. “Ela se fechou para o mundo. Deixou de se ver como mulher, como menina, como adolescente. Isso foi tirado dela.” Com Daiene, aconteceu o mesmo. “Eu jogava bola, mas me privei de usar shorts. Eu amava jogar futebol e, depois, não tinha como; eu não queria mostrar aquela cicatriz. A gente se esconde”, afirma.
Hoje mãe de três filhos, quando Larissa ia à praia com eles, ficava dentro do apartamento enquanto o resto da família aproveitava a areia e o mar. O mesmo ocorria em relação às amigas, que falavam sobre praia e biquíni. “Eu me fechei bastante por conta disso.”
Agora, ela tem uma borboleta azul tatuada em sua coxa, simbolizando a liberdade que passou a sentir. As irmãs optaram por fazer tatuagens porque não queriam passar por mais nenhum procedimento cirúrgico.
“A tatuagem é uma forma de autocuidado também, de você se reconectar com uma parte do seu corpo que deixou de lado por vergonha, dor ou algum trauma”, afirma Raquel. Para ela, a tatuagem vai além da cobertura. “Ela traz autoestima, traz beleza para essa região que te causa tanto desconforto.”
Raquel e Marguerita mostram esse trabalho na série “Sobre Essa Pele”, lançada no Discovery Home & Health e na Max no último dia 24.
Raquel sempre gostou de realizar tatuagens com propósito e, por isso, se encontrou tatuando peles com cicatrizes. Sua primeira experiência desse tipo foi em uma ação de Setembro Amarelo, em marcas de automutilação. A partir daquele momento, ela decidiu que era isso que queria fazer.
Ela e Marguerita, que é russa, se conheceram no Tinder e se casaram. Marguerita tatua há pouco mais de dois anos e já começou em peles com cicatrizes. O estilo das duas é botânico, às vezes mesclando com ornamentos.
Escolher esse caminho foi um desafio pela falta de referência, afirmam. A pele, principal aliada de trabalho das tatuadoras, é diferente quando tem alguma cicatriz, seja ela qual for. Elas tiveram de estudar as diferentes características dos tipos existentes para ter segurança na hora da aplicação da tinta.
Lígia Novais, dermatologista especialista pela SBD (Sociedade Brasileira de Dermatologia), afirma que dentro da cicatrização existem quatro resultados possíveis. O primeiro é plano, suave e da mesma cor da pele.
“Pode acontecer de a cicatriz se tornar hipertrófica, mais rígida, alta e normalmente vermelha, ou até mesmo a formação de queloide, que é também rígido, ainda mais volumoso e se estendendo além dos limites da cicatriz original”, explica.
Além disso, nos casos de acne, pode haver a formação de cicatrizes atróficas, que são a formação de um tecido côncavo no local, diz Novais. A dermatologista ressalta a importância de analisar a saúde da pele, especialmente nos casos de cicatriz hipertrófica ou queloide, e assim conter a inflamação do local.
Para atender às clientes, as tatuadoras marcam uma consulta online ou presencial para conhecer melhor a história de cada uma, compartilhar expectativas, discutir ideias e, claro, ver a cicatriz.
“A gente analisa juntas, conversamos sobre o que ela gostaria de fazer, o que gostaria de representar, como gostaria de se sentir depois com a tatuagem”, explica Marguerita. A cliente pode ditar suas preferências ou deixar nas mãos das artistas, como fez Daiene.
O próximo passo é a consulta presencial para fazer os ajustes e a criação do projeto. “A gente começa a desenhar várias ideias. Ajustar mais elementos, qual flor, se vai ter pássaro, se vai ter algum outro item que ela gostaria”, conta Marguerita.
Todo o desenho é esboçado no corpo da cliente para que ela veja no espelho como vai ficar. “Esse nosso processo ajuda muito a pessoa a ganhar segurança.”
As tatuadoras afirmam que gostariam de ver mais pessoas especializadas nessa área, principalmente porque nem toda pele é totalmente lisa. “Existem peles com cicatrizes, peles com estrias. Então, apesar de ser um trabalho muito desafiador, é preciso ter profissionais capacitados e responsáveis para esse tipo de trabalho”, diz Raquel.
“Existem muitas pessoas com cicatrizes ainda sem saber que têm a chance de ressignificar aquilo, de colocar uma tatuagem em cima e se sentir bem novamente”, diz Marguerita.
Larissa e Daiene sentiram a mudança de imediato. “Quando eu olhei, já nem lembrava mais como era minha cicatriz”, diz Daiene. “Parece que a gente sempre teve as tatuagens.”
“É como se o nosso próprio cérebro apagasse tudo que aconteceu. Não só a cicatriz, mas até os momentos ruins. Como se zerasse o game. Nós nascemos de novo, um pouquinho velhas, só”, diz Larissa, soltando uma gargalhada ao lado da irmã.
Como parte da iniciativa Todas, a Folha presenteia mulheres com três meses de assinatura digital grátis