Assim que você coloca amido na boca —seja na forma de um bolinho ou de purê de batatas—, começa a quebrá-lo com uma enzima em sua saliva. Essa enzima, conhecida como amilase, exerceu papel relevante na evolução de nossa espécie.
Dois novos estudos revelaram que nossos ancestrais começaram a carregar mais genes de amilase em duas grandes ondas. A primeira se deu há várias centenas de milhares de anos, possivelmente como resultado de os humanos começarem a cozinhar com fogo, e a segunda, após a revolução agrícola há 12 mil anos.
“Essa combinação de adaptação a ambientes diversos e modificação de nossas dietas é um princípio fundamental do que nos torna humanos”, disse o geneticista Omer Gokcumen, da Universidade de Buffalo, líder de um dos estudos. A pesquisa dele saiu na última quinta (17) na revista Science.
A nova pesquisa sugere que sociedades antigas evoluíram para ter números diferentes de genes de amilase, conforme se desenvolviam diferentes dietas.
Gokcumen levantou a hipótese de que, hoje, pessoas com menos genes de amilase talvez sejam mais vulneráveis a doenças associadas a uma dieta rica em amido. Com isso, novas pesquisas poderiam levar a tratamentos baseados em amilase para esses casos.
“Obviamente, isso é para o futuro, mas acho que nossos estudos estão realmente preparando o terreno para isso”, afirmou o geneticista.
As primeiras pistas sobre essa história escondida em nossas bocas surgiram na década de 1960, quando cientistas descobriram que algumas pessoas produziam amilase extra em sua saliva. Só nos últimos anos, porém, a tecnologia de sequenciamento de DNA se tornou precisa o suficiente para decifrar os genes de amilase que carregamos em nossas células.
“Antes estávamos olhando para uma sombra, e hoje estamos olhando para a coisa real”, disse o geneticista Peter Sudmant, da Universidade da Califórnia, Berkeley, que liderou um estudo publicado no mês passado na revista Nature.
As equipes de Sudmant e Gokcumen catalogaram uma ampla gama de cópias de amilase no DNA de pessoas. Algumas apresentavam um único gene de amilase em cada cópia do cromossomo 1, enquanto a maioria das pessoas tinha muito mais —em alguns casos, até 11 cópias.
Esses números diferenciam os humanos de outras espécies. Chimpanzés e outros macacos também produzem amilase em sua saliva, porém carregam um gene para a enzima.
A equipe de Gokcumen encontrou evidências fósseis de como nossos primeiros ancestrais adquiriram mais genes de amilase. Os pesquisadores analisaram pedaços de DNA recuperados dos ossos de caçadores-coletores que viveram há 45 mil anos. Eles estimaram que esses primeiros humanos tinham cinco cópias de genes de amilase. Quando analisaram fósseis de neandertais, também encontraram evidências de várias cópias.
Uma vez que o ancestral comum dos humanos modernos e dos neandertais viveu há mais de 600 mil anos, é possível que genes extras de amilase já tivessem evoluído até então, talvez depois que esses hominídeos aprenderam a controlar o fogo, segundo Gokcumen.
Antes do surgimento da culinária, nossos ancestrais podiam obter pouca nutrição de tubérculos crus e outras plantas ricas em amido. Mas o calor do fogo poderia quebrar as fibras resistentes das plantas, tornando-as mais digestíveis.
À medida que as pessoas passaram a depender mais de amido em sua dieta, a seleção natural pode ter favorecido aqueles que produziam mais amilase em suas bocas, de acordo com Gokcumen. As enzimas extras também podem tê-los ajudado a absorver mais nutrientes.
No estudo da Nature, Sudmant também encontrou evidências sugerindo que os genes da amilase começaram a se duplicar em nossos ancestrais centenas de milhares de anos atrás. Embora seja possível que o fogo tenha impulsionado a evolução de genes extras de amilase, ele alertou que as evidências para a hipótese ainda são escassas. “Isso é pura especulação.”
Os primeiros caçadores-coletores sofreram mutações que adicionaram ainda mais genes de amilase ao seu DNA. Alguns sofreram mutações que eliminaram genes, deixando-os com menos cópias do que seus pais tinham. Mas os novos estudos não encontraram evidências de que os caçadores-coletores tenham obtido alguma vantagem evolutiva ao ter genes extras de amilase.
Isso mudou drasticamente cerca de 12 mil anos atrás, como descobriram os novos estudos. Foi então no final da última Era do Gelo que várias sociedades começaram a domesticar culturas, incluindo alimentos ricos em amido como trigo, cevada e batatas.
Em toda a Europa e oeste da Ásia, os arqueólogos descobriram um vasto número de esqueletos desse período, dos quais os geneticistas recuperaram o DNA. Os novos estudos revelaram que o DNA contendo genes extras de amilase se tornou mais comum nos últimos 12 mil anos.
A melhor explicação para essa tendência, concluíram os cientistas, foi um pulso de seleção natural: pessoas com mais genes de amilase tinham muito mais chances de sobreviver e ter filhos do que aqueles com menos.
Ambas as equipes descobriram evidências sugerindo que a amilase foi fortemente favorecida pela seleção natural não apenas na Europa e oeste da Ásia, mas em outros lugares onde as pessoas mudaram para dietas ricas em amido.
Em um estudo ainda não publicado, o grupo de Gokcumen descobriu que cópias extras de amilase aumentaram rapidamente nos últimos milhares de anos no Peru, onde as batatas foram domesticadas há mais de 5.000 anos.
A ideia de que a amilase passou por uma intensa seleção natural em certas regiões do mundo pode soar como “uma afirmação notável e meio louca”, disse Sudmant. “Mas talvez não seja tão louco, porque essa é uma região do genoma que é ao mesmo tempo plástica e poderosa.”