Uma briga entre “assassinos” ocorre dentro de algumas pessoas, em algum momento da vida delas. A sobrevivência do humano, palco do conflito, depende do ganhador do duelo. Lucila Nassif Kerbauy tenta dar uma força, em um dos corners, para um “assassino por natureza”, que, para o bem humano, tem que ganhar.
A médica é um dos nomes escolhidos para participar da série Folha Descobertas, iniciativa da Folha em parceria com o Hospital Albert Einstein.
A briga em que ela tomou parte envolve, de um lado, cânceres —especialmente os hematológicos— e, de outro, células conhecidas como NK, abreviação em inglês para “natural killers”, ou, traduzindo, algo como assassinas por natureza.
As NK são linfócitos naturalmente presentes no nosso organismo e agem como vigias do nosso corpo, parte do sistema imune. Elas conseguem atacar organismos estranhos mesmo sem ter tido contato com eles antes.
“Ela identifica porções dessas células estranhas por meio de vários receptores na sua superfície. Dependendo do que localiza de células estranhas, ela recebe estímulo para atacar e matar aquela célula ou não”, diz a médica, pesquisadora no Hospital Israelita Albert Einstein.
Outro ponto interessante das NK que vale ter em mente é que elas não reconhecem organismos de outras pessoas como estranhos, ou seja, células de um doador saudável podem ser usadas em outra pessoa sem problemas com rejeições, por exemplo.
O problema é que os cânceres sabem alguns meios de escapar da ação desses vigias. Obviamente, para que as células NK entrem em ação, elas precisam reconhecer que houve uma falha de segurança e que há algo estranho acontecendo no corpo.
Porém, os cânceres podem expressar marcadores —proteínas— que as NK não reconhecem como estranhas ao nosso corpo. Dessa vez, sem reconhecer o inimigo “disfarçado”, elas permanecem inibidas, tornam-se menos potentes e não conseguem matar o câncer.
A pesquisadora decidiu buscar formas de melhorar o desempenho das células. Dedicou, então, o seu doutorado —em período sanduíche, entre MD Anderson Cancer Center, em Houston, Texas, e USP, no Instituto de Biotecnologia, em São Paulo— para modificá-las. Nesse intervalo de tempo, também aprendeu a fabricar as chamadas células CAR-T, hoje amplamente adotadas em tratamentos de câncer mais personalizados.
E daí vem uma questão importante: de onde conseguir as tais células NK a serem usadas na pesquisa?
A resposta encontrada por Kerbauy: cordões umbilicais.
Bancos de cordões
Mas por que pensar em cordões umbilicais para conseguir as células NK?
A disponibilidade é parte da resposta. Existe hoje, segundo Kerbauy, um grande número de células de cordões umbilicais estocados no país.
Isso porque, até recentemente, utilizavam-se essas células de cordões para transplantes alogênicos de medula óssea, que ocorrem em casos de doenças no sangue, como leucemias. “Isso fez com que se expandisse muito o estoque, não só no Brasil como no mundo”, afirma a médica.
Contudo, segundo a especialista, com o avanço da ciência, hoje é possível fazer o transplante sem 100% de compatibilidade sanguínea. Nos transplantes haploidênticos, pelo menos 50% de compatibilidade já resolvem o problema.
“Com essa nova tecnologia, os cordões umbilicais estão sendo cada vez menos utilizados. E isso acabou sendo um problema não só para o Brasil. O que vamos fazer com essas unidades que já estão aí estocadas?”, diz Kerbauy. “Então, pesquisa utilizando cordão umbilical, hoje em dia, é algo que tem muito potencial e muito interesse.”
No entanto, nem tudo é simples. Existe um porém nas NK retiradas de cordão umbilical. “É uma bolsinha pequena, o número de células NK é bem limitado”, diz a pesquisadora.
Ainda nos EUA, Kerbauy e parceiros de pesquisa desenvolveram, então, um método de multiplicar essas células e ainda dar um empurrãozinho de desempenho nelas.
“Elas são mais imaturas”, afirma a cientista. “Se você compara, sem modificar, sem fazer nada, a célula NK de um paciente, de um doador saudável, seria mais madura e teria maior capacidade de reconhecer células estranhas ao organismo. Sem a gente fazer algo a mais, não seriam tão boas [as NK de cordão umbilical] quanto se a gente usasse de um doador saudável.”
Aplicação médica
O domínio do manuseio das NK, durante o doutorado nos Estados Unidos, levou a um estudo clínico e a pacientes curados, afirma Kerbauy.
“A gente tratou mais de 42 pacientes”, diz a cientista, sobre o estudo conduzido nos EUA com base em sua pesquisa. “Quando eu vi o primeiro paciente, que já tinha recebido 13 linhas de tratamento prévio, um paciente com linfoma de Hodgkin, que já tinha recebido tudo que era possível, e ele, com aquele meu tratamento, curou…”
Segundo a pesquisadora, a célula NK manipulada no seu doutorado foi patenteada e uma empresa alemã licenciou seu uso. Atualmente, a companhia está tentando transformar o experimento em um produto a ser comercializado.
Já de volta ao Brasil, no Einstein, a cientista continua seu trabalho em cima dessa célula NK, buscando um maior aperfeiçoamento para o tratamento de câncer.
Por sinal, Kerbauy não se enxerga como uma cientista ou uma médica. Ela se sente uma médica-cientista ou vice-versa.
“Ao longo do tempo, fui percebendo que eu ser só médica, do dia a dia, só no cuidado do paciente, faltava algo em mim. Foi quando eu descobri a Lucila pesquisadora. E eu também não consigo só viver de pesquisa. Hoje estou numa harmonia em que eu sou a Lucila que cuida de paciente e a Lucila que é pesquisadora. Nessa minha harmonia, estou feliz.”
Lucila, médica-cientista
Atualmente, Kerbauy participa mais ativamente em dois projetos de pesquisa médica no Einstein.
Em um deles, em fase 1 —para, em linhas gerais, testar dose e segurança— aprovada pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), ela e outros pesquisadores estão testando células CAR-T específicas em pacientes com diagnóstico de linfoma difuso de grandes células B, leucemia linfoide aguda e leucemia linfoide crônica, que tenham se submetido a pelo menos duas linhas de tratamento prévio.
A pesquisadora diz que, para esse estudo, os pacientes —que podem também ser provenientes do SUS—, têm células de defesa coletadas e modificadas no Einstein. “Depois o paciente é tratado aqui, ele vai receber quimioterapia e a infusão das células CAR-T”, afirma Kerbauy.
O outro estudo, que recentemente teve sua realização aprovada pela Anvisa, diz respeito às células NK provenientes de cordões umbilicais. Nesse caso, o foco são pacientes com leucemia mieloide aguda submetidos a pelo menos duas linhas de tratamento prévio.
Para esse segundo estudo, também em fase 1, a ideia é o uso somente das células NK pós-expansão, ou seja, sem modificações genéticas —somente o processo de ativação e melhoramento citados anteriormente. Os pacientes, nesse caso, farão quimioterapia normalmente e, depois, receberão a infusão das NK.
No fim, em meio às células assassinas, a busca de Kerbauy é pela qualidade de vida para os pacientes, especialmente para aqueles que não têm sucesso terapêutico e ficam sem opção. Ou melhor: pacientes não, pessoas.
“A gente conversa muito isso entre amigos: o paciente ser hoje de novo o José, a Maria, não ser a leucemia, o linfoma”, afirma Kerbauy.
A série apresenta, quinzenalmente, os perfis de dez jovens pesquisadores brasileiros de diferentes áreas de atuação e regiões do país. Para chegar aos nomes deles, a seleção partiu de indicações de um comitê formado por figuras de destaque do cenário científico nacional.
A série Folha Descobertas é uma parceria com o Hospital Israelita Albert Einstein