Em qualquer roda de conversa que deriva para o tema de drogas psicodélicas, a primeira pergunta sempre é: por que pessoas sob efeito dessas substâncias pulam da janela ou jogam o carro contra o poste? O mito, criado pela propaganda da Guerra às Drogas, foi desmentido pela enésima vez num estudo do Reino Unido (não deixe de ler informações adicionais no P.S. ao final do texto).
“Mortes Relacionadas com Psicodélicos na Inglaterra, no País de Gales e na Irlanda do Norte (1997-2022)” saiu em formato eletrônico no periódico Progress in Neuro-Psychopharmacology and Biological Psychiatry. O artigo tem Emma I. Kopra como primeira autora e será impresso na edição de 10 de janeiro de 2025.
Em 25 anos, o grupo identificou 28 mortes no Reino Unido (exceto Escócia) em que psicodélicos estiveram envolvidos. Os dados saíram de relatórios de médicos legistas, o que resultou em números superiores aos do Escritório Nacional de Estatística, pois este exige menção a drogas específicas no atestado de óbito para que entrem no cômputo de mortalidade.
O artigo pondera que os 28 óbitos são quase certamente subestimados, porque legistas não são obrigados a encaminhar relatórios ao Programa Nacional de Mortalidade por Uso de Substâncias; no entanto, a cobertura é da ordem de 85%, registram os autores. Também podem ter ficado de fora mortes em que o uso de psicodélicos não foi investigado ou testes toxicológicos deixaram de ser feitos.
Suponha o leitor que, com tais limitações, o levantamento tenha captado só metade, ou quem sabe um quarto das mortes efetivamente ocorridas sob efeito de psicodélicos. Na pior hipótese, multiplicando 28 por 4 teriam ocorrido 112 óbitos em um quarto de século, ou menos de 5 por ano.
Para dar uma noção da raridade desses eventos, basta mencionar que de 1987 a 2016, no Reino Unido, 58 pessoas morreram atingidas por raios, ou seja, da ordem de 2 por ano. Mas a comparação pertinente seria com outras drogas, não com descargas elétricas.
Em 2021 o tabaco (fumantes primários e secundários) respondeu por 75,8 mil mortes no Reino Unido. Em 2022, o álcool acarretou 7.912 mortes de britânicos. São duas drogas legais, apesar de causarem dependência, em oposição aos psicodélicos, mantidos como substâncias proibidas por risco de causar adicção e ausência de potencial terapêutico (o que a pesquisa indica não ser verdade).
Seria irônico, se não fosse trágico. Psicodélicos como MDMA (ecstasy) e psilocibina (de cogumelos ditos “mágicos”) são hoje a principal promessa de tratamentos inovadores para transtornos como estresse pós-traumático e depressão resistente. Se fosse baseada em ciência, não em ideologia, a lista deveria proibir cigarro e bebidas alcoólicas, não alteradores de consciência em uso tradicional há milênios.
De todo modo, o artigo de Kopra e colaboradores examinou também fatores concomitantes ao uso do psicodélicos que podem ter contribuído para as 28 mortes registradas. O mais frequente deles: uso de outras substâncias, verificado em 23 casos (82%).
A maioria das mortes (86%) foi decorrente de acidentes. Só três delas (11%) foram indicadas pelos legistas como suicídios. Ou seja, não tem apoio considerável em evidências estatísticas a noção difundida de que psicodélicos levam usuários a se matar.
Isso quer dizer que psicodélicos são substâncias inócuas? Claro que não. São alteradores poderosos da consciência, cujo eventual uso terapêutico, ainda sob investigação e legalizado em casos excepcionais por poucos países, exige acompanhamento especializado.
Por outro lado, em que pesem os riscos psicológicos, eles têm perfil farmacológico relativamente seguro, não se conhecendo casos de morte por overdose, por exemplo. Mais uma razão para considerar seriamente a regulamentação para uso adulto, acompanhado de campanhas educativas para redução de danos.
A exceção concedida para drogas muito mais perigosas, como nicotina e álcool, prova que não estamos ainda preparados para essa conversa. No Brasil, pelo menos, porque ela já avançou na Austrália e no Canadá, entre outros países.
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P.S.: Nos comentários do blog, o leitor José Cardoso ponderou: “A estatística correta é dividir as mortes pela frequência de uso. Muito mais pessoas bebem ou fumam que as que ingerem habitualmente LSD ou chá de cogumelos. Não se pode comparar os números totais de mortes”.
Obviamente, ele está certo.
No entanto, não é tão incomum quanto se pensa o uso de psicodélicos: no Reino Unido, 1% da população, o que dá hoje 683 mil pessoas.
Considerando que os tabagistas britânicos são cerca de 6 milhões, e que quase 76 mil morrem a cada ano por causa do cigarro, conclui-se que há uma morte a cada grupo de 80 fumantes.
Com 683 mil usuários de LSD e cogumelos, principalmente (MDMA, ou ecstasy, está em queda), e quem sabe 5 mortes por ano, se tanto, a taxa anual seria de um óbito para cada contingente de 136 MIL psiconautas.
Não são dados científicos, e sim contas feitas a partir de cifras obtidas em cinco minutos na internet. Mas dão boa ideia das ordens de grandeza envolvidas, francamente favoráveis à maior segurança dos psicodélicos.
Isso não quer dizer que sejam drogas inócuas, como assinalei no texto. Só quer dizer que não estamos preparados para essa discussão, como também escrevi.