“Claro que o Pablo Marçal ou quem paga R$ 250 mil em um curso dele são a exceção da exceção entre os influenciadores”, diz Rosana Pinheiro-Machado, 44, professora da Universidade de Dublin, na Irlanda. Ainda assim, aspirantes a integrar esse grupo reduzido vendem carros ou usam o FGTS para pagar mentorias de R$ 50 mil, motivadas pela crença de que mudarão de vida, diz ela.
Pinheiro-Machado registrou essas histórias durante o monitoramento, desde fevereiro, da relação entre 549 mentores brasileiros do Instagram —influenciadores consagrados que hoje vendem cursos— e 500 mil aspirantes a influenciador. O primeiro relatório do estudo, baseado em análise de 100 mil perfis, 32 entrevistas e acompanhamento de 12 mentorias, deve sair no fim deste mês.
O mercado de influência, afirma a professora, encontrou no Brasil solo fértil, ao prometer uma alternativa para o sonho frustrado do bom emprego. “O trabalho formal aqui é marcado pelo histórico de informalidade, baixo salário e desmando”.
“As pessoas agora desejam ficar milionárias com a economia digital”, diz a antropóloga, que conversou com a Folha, da Irlanda, por videoconferência.
Pesquisando esse universo, ela recebeu relatos sobre jovens talentosos que desistem de vagas no ensino superior para tentar a sorte nas redes sociais e sobre comerciantes informais que tiveram de se adequar à realidade da internet para sobreviver ao isolamento social iniciado para prevenir a Covid-19.
Em comum, os aspirantes a influenciadores expressam dificuldades em lidar com as exigências para ser bem-sucedido nesse mercado —conhecimento técnico e padrões estéticos inatingíveis.
A estimativa é que existam, nas projeções mais baixas, segundo Pinheiro-Machado, 25 milhões de brasileiros que trabalham no Instagram —mais da metade sem acesso a uma conta de negócios por falta de familiaridade com a plataforma. A rede social, porém, diz não ter esses dados.
A partir de uma amostra estatisticamente significativa de 1.000 perfis recolhida do universo de 500 mil criadores de conteúdo brasileiros, a antropóloga percebeu que a maioria do grupo estudado era de mulheres, pobres, periféricas ou negras. “É tudo mulher doceira, de igreja, brasilzão popular, a base da pirâmide, são as pessoas batalhadoras que sempre estiveram na informalidade.”
A pesquisa divide os influenciadores por tamanho. O primeiro grupo, de até 5.000 seguidores, envolve as pessoas que falam com família e vizinhos. A partir de 5.000, a pessoa é grande no Instagram, mas nem sempre relevante —pode ter viralizado por uma publicação ou apenas ser popular no bairro.
Os 50 mil seguidores, diz a professora, consolidam o criador de conteúdo no mundo do marketing digital e das mentorias. “Só que muitos estacionam na casa dos 150 mil, acima de 200 mil já estão as pessoas poderosas do meio.”
Entre os influenciadores, mostrar que tem dinheiro aumenta o prestígio. “É sob essa perspectiva que o influenciador grande marca sua ascensão colocando, fixos, nas fotos do topo do perfil: o Porsche, a mansão que geralmente é uma casa quadrada e a foto dos filhos ou da família.”
Acima dos 500 mil seguidores estão as contas ‘gigantes’, como Pablo Marçal, Thiago Nigro, Érico Rocha. “Eles atuam como uma rede, se entrevistam, nunca se confrontam, se promovem. É muito difícil ver inovação, porque um copia o outro. Todos desenvolvem o próprio método de enriquecimento. Dão nomes aos seguidores: ‘minhas leoas, minhas herdeiras, mulherada’. Assim, criam comunidades”, detalha Pinheiro-Machado.
A professora segue 550 grandes mentores do Instagram para analisar o discurso de cada um. Cerca de 87% deles estariam em um espectro entre a direita e a extrema direita, em sua avaliação, que considerou a interação com políticos e influenciadores conservadores e libertários.
Marçal e seus pares, também chamados de mentores, usam a receita do “se eu consegui, você também pode”, para vender a promessa de um luxo cinematográfico.
“É uma coisa arrebatadora, eles dizem ‘ganhei R$ 10.000, ganhei R$ 100 mil, venha, venha’, são as bets do mundo do trabalho.” Ao mesmo tempo, os mentores, afirma Machado, tratam o emprego fixo como “coisa de mané que não quer enriquecer”.
“Só que a pirâmide da desigualdade brasileira, não permite isso, até porque o algoritmo do próprio Instagram tem uma estrutura algorítmica piramidal —é claro que as pessoas de baixo não vão subir”, acrescenta.
Os criadores de conteúdo, todavia, dão forma a uma pirâmide aspiracional que cria ilusões entre milhões, de acordo com Pinheiro-Machado. “Isso é no mínimo antiético, os influenciadores acabam jogando com a culpa das pessoas, porque a maioria não vai conseguir.”
Os mentores, segundo a pesquisadora, são capazes de vender projetos de futuro para um naco relevante da população. “Hoje, junto com as igrejas evangélicas, a lógica do marketing digital é a grande mola propulsora da criação de sonhos e de fantasias, muitas vezes deslocadas na realidade.”
Para a mobilidade social, diz Machado, as pessoas precisam de capacidade de sonhar. “Mas, se ela mira desde criança que vai ser jogador de futebol, a chance de só um na turma ser jogador de futebol é muito grande, e todo o resto deve fracassar, é necessário ter esse equilíbrio dos sonhos.”
A fantasia de sucesso é o próprio produto, diz Pinheiro-Machado. As pessoas iniciam a mentoria e já começam a vender. “Entre os nanoinfluenciadores, com menos de 1.000 seguidores, a chamada que eles mais usam é ‘eu te ajudo, eu te ensino’. A pessoa ainda não cresceu e ela já está vendendo a estratégia para crescer.”
Os maiores mentores, contudo, já perceberam que o mercado está saturado e passaram a abrir outros negócios. “Mas antes eles brincaram com os sonhos de milhões e milhões.”
Essa falta de balance é fruto de um mercado completamente desregulamentado. O primeiro passo para enfrentar o problema, diz a professora, seria reconhecer as redes sociais como plataformas de trabalho, assim como Uber e iFood. Assim, o governo poderia interceder com políticas públicas, seja de controle sobre o empregador ou de fomento ao empreendedorismo digital.